Nova lei acirra conflito entre distribuidoras de combustíveis sobre créditos de carbono; entenda
Pequenas e médias distribuidoras de combustíveis, as chamadas eldquo;regionaiserdquo;, devem seguir no caminho de judicialização do RenovaBio. Este é o nome de uma política federal com regras em vigor desde 2019 com o objetivo de expandir a produção de biocombustíveis e assim ajudar na descarbonização do Brasil, ou seja, na redução de emissões de gases causadores do efeito estufa.
Para atingir pelo menos 85% das metas estipuladas pelo programa, as distribuidoras têm de comprar os chamados Créditos de Descarbonização (CBIOs). Esses créditos, como forma de estimular a transição energética, destinam-se a empresas do mercado que produzem biocombustíveis.
As pequenas reclamam da volatilidade desse mercado, enquanto as grandes, que o descumprimento das regras pelas menores gera uma concorrência desleal, com custos mais baixos e preços mais competitivos.
Sancionada neste início de ano, uma lei concebida para endurecer penalidades a inadimplentes dentro do programa acirra o conflito no setor. Como um voto de confiança à legislação, as distribuidoras de grande porte recuaram da estratégia de levar o RenovaBio à Justiça.
Quantas empresas estariam inadimplentes
Um relatório do Citi afirma que, durante 2024, 61 distribuidoras de combustíveis não cumpriram as metas de descarbonização do RenovaBio e estão sujeitas às punições da nova lei.
No teto, os analistas Gabriel Barra e Pedro Gama avaliam: eldquo;Vemos uma maior fiscalização com o Programa RenovaBio como positiva para o setor de distribuição de combustíveis, pois o não cumprimento da meta por alguns players gera concorrência desleal no setor e garante uma margem maior a esses players, uma vez que o custo de aquisição de CBIOs é repassado ao preço do combustível fóssil e suportando um aumento de market share desses playerserdquo;.
Os analistas estimam que, em 2024, cerca de 12% (contra 13% em 2023) do mercado de diesel e 15% (ante 17% em 2023) de gasolina, etanol e gás natural (até novembro) vieram de empresas que não atingiram o mínimo para estar em conformidade com o programa.
Já as quatro maiores distribuidoras nacionais, Vibra, Grupo Raízen, Ipiranga e AleSat, estão em dia com o programa e representaram, em 2024, 55% da meta estabelecida pela ANP, o equivalente à compra de 25,7 milhões de CBIOs.
Nas contas do Citi, com a compra de CBIOs ao longo de 2024, a Vibra desembolsou cerca de R$ 840 milhões e a Ipiranga, R$ 617 milhões, implicando um custo por metro cúbico de R$ 23 no primeiro caso e de R$ 26 no segundo, para atingir a meta.
Para distribuidoras regionais, nova lei é inconstitucional
Executivos do setor a par da estratégia afirmam que as distribuidoras regionais planejam alegar na Justiça que a nova lei é inconstitucional.
A nova lei não mexe em aspectos estruturais do programa, como a obrigação unilateral de compra dos CBIOS (a oferta dos créditos não é compulsória) e sua volatilidade de preços. Ainda assim, executivos das empresas definem a nova lei como eldquo;intimidatóriaerdquo; e eldquo;legalmente frágilerdquo;.
Para um executivo do setor, a nova lei é inconstitucional pois, a seu entender, não se pode transformar em crime ambiental o não pagamento de um imposto controverso, que nem é imposto, e sim uma transferência de renda privada para produtores de biocombustíveis.
O que diz a ANP
Em nota ao Estadão/Broadcast, a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) disse ver eldquo;de maneira muito positivaerdquo; a alteração da legislação e lembrou que vem priorizando processos sancionadores contra empresas que não cumprem metas do programa, que podem ir além de multas, chegando a cassação da autorização e funcionamento. Há, segundo a ANP, quatro empresas nesse estágio extremo por não pagarem multas.
eldquo;A Lei 15.082/2024 traz, expressamente, diversas punições aos distribuidores que não cumprirem suas metas, tais como a tipificação de crime ambiental e a proibição a outros elos da cadeia de venderem combustíveis para os distribuidores inadimplenteserdquo;, diz.
Para reduzir a inadimplência do RenovaBio, que ficou em 37,4% em 2024, a nova lei também aumenta o teto da multa de R$ 50 milhões para R$ 500 milhões e transfere a meta não cumprida para eventuais CNPJs novos, abertos pelo grupo econômico inadimplente com o programa.
Empresas tentam se proteger com decisões liminares
O advogado Rafel Milhomens, do escritório Montenegro Filho, que atua na defesa de dezenas de distribuidoras que judicializaram o RenovaBio, explica que a nova lei não alcança empresas protegidas por decisões liminares que suspendam suas obrigações relativas ao programa.
eldquo;Havendo depósito judicial, não pode haver penalidade. Essas empresas ficam imunes do efeito da nova lei, por determinação judicial. Quando o juiz diz que está suspensa a exigibilidade do crédito e aplicação de penalidades, essas elas não podem ser consideradas inadimplentes em hipótese algumaerdquo;, diz Milhomens.
Procurada, a Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (Brasilcom), que representa as distribuidoras regionais, disse apoiar o programa, mas que considera eldquo;urgenteerdquo; uma revisão.
eldquo;O atual formato do RenovaBio não atende aos objetivos originais da lei, além de o CBIO não se qualificar como um crédito de carbono fungível. Também é preciso corrigir imperfeições que geram graves assimetrias concorrenciais, prejudicando financeiramente as distribuidoras menoreserdquo;, afirmou.
Segundo estudos da PUC-Rio patrocinados pela Brasilcom, os custo com o programa leva as distribuidoras a aumentar seus preços finais em até 12 centavos por litro. Entre outras medidas, a Brasilcom defende que outros tipos de crédito de carbono sirvam ao cumprimento das metas; que haja obrigação e oferta de CBIOs para produtores de biocombustíveis; e que outros elos da cadeia, como o de refino, tenham obrigações de descarbonização.
Como está a batalha judicial
O Estadão/Broadcast apurou que existem 41 processos judiciais em que distribuidoras regionais pediam ou ainda pedem a suspensão das obrigações de compra e aposentadoria dos créditos de descarbonização, mediante depósitos judiciais que equivaleriam às suas emissões de carbono definidas por certificadoras independentes.
Segundo a ANP, resultam desses processos 21 decisões liminares (provisórias) favoráveis a essas empresas, impedindo a aplicação de sanções por descumprimento do RenovaBio e, em uma delas, a revogação da autorização de funcionamento. Esse número já foi maior, visto que algumas decisões foram revogadas em linha com a defesa do programa feita pela ANP na Justiça.
Ao obter as liminares, as regionais seguem operando normalmente, protegidas de penalidades da ANP, que reage, em nota: eldquo;Os depósitos judiciais são calculados pelos requerentes com base no faturamento da empresa ou no preço médio do CBIO nos anos iniciais do RenovaBio, o que não é permitido de acordo com a Lei 13.576/2017 (que estabelece o programa)erdquo;.
A Justiça acolheu uma série de alegações, desde o teor especulativo dos créditos comercializados na Bolsa de Valores de São Paulo, a B3, até a sustentabilidade financeira das empresas. Assim, as distribuidoras regionais passaram a garantir na Justiça o direito de medir de forma independente sua pegada de carbono e fazer pagamentos equivalentes.
Em favor de distribuidoras, o escritório Montenegro Filho Advogados diz ter hoje 13 liminares ativas, das quais quatro na segunda instância e nove na primeira. Entre essas empresas, estariam Ciapetro e TDC, citadas em relatórios de bancos por não aposentar nenhum CBIO em 2024. Segundo o advogado Rafael Milhomem, apenas três liminares obtidas pelo escritório foram revertidas.
A maior vitória do escritório até aqui veio no fim de outubro, em favor da Biopetro, distribuidora de Ribeirão Preto (SP). Em votação colegiada unânime, os três magistrados da 6ª Turma do TRF-1 aceitaram em parte o pedido para que os depósitos judiciais da empresa fossem reconhecidos nas contas de suas metas de descarbonização de 2022, quando a empresa havia cumprido apenas 30,7% da meta de CBIOs, e de 2023, quando não comprou nenhum crédito.
O depósito de R$ 700 mil foi usado para compra de quantos CBIOs fossem possíveis na B3, o que não perfaz a meta imposta pela ANP, mas resolve a questão judicialmente. Segundo a defesa, se não tivesse ido à Justiça, a Biopetro teria de gastar cerca de R$ 4 milhões para estar em dia com o Renovabio.
Em 2022, o preço do CBIO oscilou entre R$ 31,99 e R$ 209,50. Já em 2023, a faixa de variação foi entre R$ 84,45 e um teto de R$ 163,50. Na decisão, o colegiado aponta a eldquo;excessiva volatilidadeerdquo; dos preços.
Falta de compradores desvaloriza crédito de descarbonização
O fato de distribuidores de combustíveis não realizarem a compra de CBIOs já afeta o preço médio desses créditos no mercado. Em 2024, o preço médio desse papel foi de R$ 87,6, o que representa uma redução de aproximadamente R$ 26 em relação à média de 2023, que foi de R$ 113,6.
A queda de preço é positiva para os distribuidores que, segundo as regras do programa RenovaBio, têm de adquirir os créditos. Em contrapartida, para os produtores de biocombustíveis, representa queda na receita.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), essa queda no valor médio pode ser atribuída ao aumento da quantidade de transações realizadas ao longo do ano, impulsionada pelo alto estoque de CBIOs resultante da inadimplência de distribuidores e pelo aumento da oferta por parte dos produtores.
Neste mês, a ANP divulgou o resultado do cumprimento das metas do RenovaBio pelos distribuidores em 2024. As metas individuais são estabelecidas pela agência com base nas metas anuais fixadas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), acrescido das metas não cumpridas no ano anterior. Em 2024, esse montante estabelecido ultrapassou 46,4 milhões de CBIOs, dos quais apenas 35,7 milhões foram efetivamente adquiridos pelos distribuidores.
O IBP afirma que a meta estabelecida pela ANP já refletia a falta de cumprimento das obrigações, uma vez que, em 2023, 7,6 milhões de CBIOs deixaram de ser adquiridos e foram incorporados às metas do ano seguinte.
eldquo;No entanto, em 2024, a situação se tornou ainda mais preocupante, com 10,7 milhões de CBIOs não aposentados (ou não comprados), representando um cumprimento de apenas 77% da meta estabelecida para o período. Nota-se que ano a ano o número de CBIOs não aposentados aumenta, evidenciando a prática contumaz de descumprimento do programa por alguns agentes de mercadoerdquo;, afirma o instituto.
Quanto os produtores de biocombustíveis receberam
Estima-se que, em 2024, os produtores de biocombustíveis tenham recebido uma receita de R$ 3,1 bilhões oriunda do RenovaBio. Desde o início do programa já foram transferidos dos distribuidores para os produtores de biocombustíveis um montante de aproximadamente R$ 11,6 bilhões.
Ainda segundo o IBP, a não aquisição de CBIOs proporciona uma vantagem competitiva ao distribuidor que não cumpre as obrigações estabelecidas pela ANP, em comparação com aqueles que seguem as regras. eldquo;Considerando os 10,7 milhões de CBIOs não adquiridos em 2024, estima-se que a vantagem competitiva gerada pela não aquisição desses créditos tenha chegado a R$ 937 milhõeserdquo;, diz o Instituto no estudo obtido com exclusividade pelo Estadão/Broadcast.