Aumento compulsório do biodiesel provoca impacto econômico e operacional
Desde 1º de agosto de 2025, a gasolina comum e aditivada vendida nos postos de todo o Brasil passou a conter 30% de etanol anidro (E30) e o óleo diesel, 15% de biodiesel (B15), conforme decisão do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) no âmbito da Lei do Combustível do Futuro (Lei 14.993/2024). As gasolinas premium permanecem com 25% de etanol anidro. Apesar do anúncio como marco ambiental e de autossuficiência em combustíveis, especialistas indicam que há desafios técnicos significativos, risco de aumento de custos e contradições sobre a real dimensão da eficácia ambiental das novas misturas.
A partir do final da década de 1930, durante o governo Getúlio Vargas, por necessidade econômica e viabilidade técnica, o etanol anidro passou a ser utilizado como aditivo na gasolina na razão de 5%. Nos anos 70, o Proálcool foi implantado com o objetivo de reduzir a dependência do petróleo e estimular a produção do etanol combustível, ampliando o percentual de etanol anidro na gasolina para 20%. E ainda houve o lançamento dos veículos exclusivamente a etanol hidratado combustível, um produto novo. Neste período houve forte crescimento da demanda pelos biocombustíveis, etanol anidro e etanol hidratado. A produção agrícola e a indústria de beneficiamento dos biocombustíveis não conseguiram acompanhar a referida demanda, resultando em grave crise de abastecimento e elevando prejuízos para os consumidores. Em 2003, surgem os motores flex e, lentamente, vai se retomando a confiança do consumidor nos biocombustíveis, com o aumento das vendas dos veículos flex e consequentemente dos biocombustíveis.
Em 2022, quando as misturas eram E27 e B12, o Brasil já era o país que mais utilizava a proporção obrigatória de biocombustíveis nos combustíveis fósseis (gasolina C e diesel B) no mundo. Segundo o trabalho eldquo;Mandatos de Misturas de Biocombustíveis no Mundoerdquo; da EPE (levantamento publicado pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE), enquanto no Brasil a quantidade de etanol anidro na gasolina era de 27%, no restante do mundo a percentagem desse produto não ultrapassava os 15%. No caso do biodiesel, somente o Brasil impõe a obrigação de um teor de biodiesel acima de 10%, a maioria dos países utiliza percentuais bem abaixo, e de forma voluntária. A exceção é a Indonésia que pratica percentuais em torno de 30% por razões muito específicas, justamente por ser um país com alta dependência da importação de petróleo.
eldquo;Reconheço a importância das políticas de transição energética e dos biocombustíveis, mas é preciso realizar os estudos técnicos e econômicos relacionados com a execução das iniciativas de forma a reduzir riscos para os consumidores e a indústria envolvida na atividade. Os sucessivos aumentos do uso dos biocombustíveis não estão levando em consideração questões técnicas do processo de homogeneização dos produtos e o impacto econômico na economia popular, deixando a impressão de que a tomada dessas decisões ocorre sem planejamento e sob pressão dos grupos de interesses. Não é só uma mudança de número, tem um efeito operacional em série e um impacto econômico relevanteerdquo;, comenta Francisco Castro Neves, diretor-executivo da Associação Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (ANDC).
Desafios logísticos: bases de armazenamento e transporte precisam se adaptar
Herbert Oliveira é professor associado do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde realiza estudos sobre a complexidade das misturas de biodiesel. Ele explica que as bases de transporte e armazenamento existentes não foram projetadas originalmente para operar com misturas tão elevadas de biocombustíveis e terão que ser redimensionadas e atualizadas com novos equipamentos e instrumentos.
eldquo;No caso do biodiesel, o impacto é ainda maior, pois se trata de um combustível com propriedades físico-químicas diferentes do diesel fóssil. Em uma pesquisa que estamos conduzindo na UFBA, pode-se constatar, ainda que de forma preliminar, a natureza complexa do processo de homogeneização do biodiesel no diesel, acentuada com os aumentos sucessivos do teor legalmente exigido de biodieselerdquo;, explica o especialista.
eldquo;Fatores que impactam no processo de mistura durante carregamento dos combustíveis: o tempo necessário para a plena homogeneização; a temperatura ambiente; a dinâmica da mecânica dos fluxos desde o carregamento no caminhão-tanque até a efetiva amostragem; a temperatura e a umidade locais; e a matéria-prima de origem do B100 utilizado. Tudo isso se apresenta como variáveis críticas com grande influência na qualidade da mistura finalerdquo;, detalha.
Os pesquisadores da instituição também constataram que faltam estudos aprofundados relacionados à homogeneização de biodiesel no diesel na literatura acadêmica, o que aponta para a necessidade urgente de apoio para novos estudos nessa área diante da curva crescente de aumento da proporção do biocombustível. Do mesmo modo, também é preciso que haja investimentos expressivos em infraestrutura das bases de distribuição.
eldquo;Desde o ano de 2008, quando biodiesel foi introduzido de maneira compulsória na matriz de combustíveis brasileira na razão de 2%, não houve qualquer iniciativa, investimentos ou financiamento público voltados para o desenvolvimento de equipamentos e instrumentos específicos para atualização tecnológica do processo de homogeneização, de modo a acompanhar a complexidade crescente em função dos aumentos sucessivos do teor exigido de biodieselerdquo;, pondera Herbert.
Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) apontam que problemas de qualidade no diesel B cresceram junto com o aumento do teor de biodiesel no diesel. Tais problemas ocorrem em toda a cadeia produtiva, sendo maiores as não conformidades junto ao produtor e menos frequentes nas etapas a jusante, chegando ao consumidor com relativa qualidade, exigindo cada vez mais cuidado no manejo do produto por todos, inclusive os consumidores.
Segundo especialistas, as dificuldades no controle da qualidade do diesel B crescem com a elevação dos percentuais de mistura. eldquo;O aumento das não conformidades do diesel B, sobretudo no momento de alteração das novas obrigações, são atestados pelo Programa de Monitoramento de Qualidade dos Biocombustíveis endash; PMQC, o qual reflete a situação do combustível no varejo. Enquanto o Programa de Monitoramento de Qualidade dos Biocombustíveis endash; PMQBio, recentemente publicado, traz o diagnóstico da qualidade dos produtos primários junto ao produtor e ao distribuidor.
No caso do biodiesel, o parâmetro de qualidade eldquo;contaminantes totalerdquo; junto ao produtor foi de 17% de não conformidade, enquanto nas bases de distribuição o mesmo parâmetro foi melhor, com 12,5% de não conformidade. Esse cenário aponta que a qualidade do combustível melhora ao longo da cadeia produtiva e chega ao consumidor com índices de não conformidade em torno de 4%, o que demonstra de forma objetiva o comprometimento dos distribuidores e revendedores com a qualidade dos combustíveis, mas expõe a complexidade e o risco existentes nos referidos processos. A adequação e modernização das instalações das bases de distribuição demandam tempo e muito recursos associados a um processo que envolve projeto, obras, licenciamento ambiental, corpo de bombeiro etc., e ainda enfrentam as dificuldades da gestão pública no âmbito municipal, estadual e federal. Esse processo desprezado pela tecnocracia do serviço público e pelos tomadores de decisões é demorado, caro e muito importante para a regularidade no abastecimento nacional, aponta Francisco Castro Neves.
eldquo;Diante de um cenário tão desafiador, torna-se necessária a atenção dos gestores públicos e formuladores das políticas para o tema, com vistas inclusive à construção de financiamento público para essas pesquisas e modernizações. Assim como é preciso avaliar a oportunidade nas tomadas de decisões e estabelecer um prazo adequado para que as distribuidoras de combustível consigam promover essas mudanças. O intervalo de mudança do teor de biodiesel não deveria ser inferior a três anos e na razão máxima de 1% para o aumento do biodiesel no dieselerdquo;, complementa.
Impactos para o consumidor: custo e manutenção
Os consumidores finais também precisam acompanhar essas mudanças e seus efeitos com atenção, principalmente os que possuem veículos antigos devido à incompatibilidade de materiais e à necessidade de pureza do combustível. Segundo Herbert, o biodiesel pode causar acúmulo de resíduos, obstrução de filtros e mangueiras, além de afetar a combustão e a eficiência do motor. Já o etanol, em altas concentrações, pode corroer peças e causar problemas de partida, embora veículos flex sejam projetados para lidar com ele. Além disso, embora não cause danos permanentes, a necessidade de consumo da mistura por quilômetro rodado, em comparação à gasolina pura ou a misturas com menores concentrações de etanol, tende a ser maior.
Do ponto de vista financeiro, o aumento dos percentuais de etanol e biodiesel significa aumento dos custos dos combustíveis com potencial de refletir no preço ao consumidor. Com o crescimento do etanol anidro na gasolina, a oferta de etanol hidratado tende a diminuir. Ou seja, o preço do etanol hidratado nos postos de gasolina deve aumentar, fazendo com que o interesse do consumidor por utilizar o produto sem adição de combustível fóssil (o que seria melhor sob o ponto de vista ambiental) diminua.
Já o valor do diesel B é afetado pelo preço do biodiesel, que, apesar da supersafra de soja nacional, vem encarecendo e no momento ultrapassa o dobro do diesel (preço de compra do distribuidor sem imposto: biodiesel R$ 6,35/litro e diesel R$ 3,14/litro).
Outro fator é o maior custo da infraestrutura de transporte, armazenamento e homogeneização do biodiesel. Assim, cresce a necessidade de mais caminhões para carregar o produto primário, com os desafios técnicos do transporte, armazenamento e manuseio do biocombustível, com possibilidade de repercutir nos preços ao consumidor final.
O valor dos combustíveis na bomba também depende de outros fatores, como tributação, custos logísticos, margens comerciais e câmbio, como explica Carlos Germano Jr., advogado especialista em Gestão e Direito do Petróleo e Gás: eldquo;Na prática, o que se observa é que a gasolina C e o diesel B passam a ter sua formação de preço ainda mais atrelada às commodities agrícolas (soja, cana, milho), cujas cotações são definidas em mercados internacionais como Chicago.
Isso traz maior volatilidade e imprevisibilidade, pois qualquer oscilação global de safra, clima ou geopolítica pode se refletir de imediato nos custos domésticos. Para as distribuidoras, o cenário exige gestão de risco mais complexa; para os consumidores, aumenta o risco de repasses de alta, sem garantia de redução efetiva do preço na bombaerdquo;.
A ANDC formalizou um pedido de estudo de impacto na economia popular do E30 e B15, mas não recebeu retorno. eldquo;O poder público precisa planejar e avaliar os impactos das políticas impostas à sociedade, sob o ponto de vista do interesse público e neste caso isso não ocorreu. A participação do Ministério da Fazenda na decisão seria fundamental pois é quem tem especialidade nos estudos econômicos de impacto inflacionário e o que assistimos é o Ministério de Minas e Energia agindo sozinho, literalmente e#39;empurrando com a barrigae#39; decisões que afetam toda a sociedadeerdquo;, alerta o diretor-executivo da associação.
Até o momento, também não houve uma campanha de comunicação ampla e estruturada do governo federal para esclarecer os usuários sobre os cuidados com o manejo dos novos combustíveis, o que amplia os riscos de danos aos consumidores decorrentes das novas misturas de combustíveis, nos diferentes perfis de consumo.
Contradições ambientais
A presença dos biocombustíveis na matriz de transporte é positiva, pela segurança do abastecimento, eficiência energética e por contribuir com a redução das emissões de gases poluentes. O problema é a proporção dos biocombustíveis, que nesse caso, há aderência absoluta com o provérbio consolidado na ciência e na cultura popular de que eldquo;a diferença entre o veneno e o remédio é a dosagemerdquo;.
Os estudos técnicos e econômicos construídos com impessoalidade e rigor técnico são elementos necessários e condição primeira para o equilíbrio e o êxito da política no longo prazo. Assim, a aplicação da Lei do Combustível do Futuro, a qual criou metas ambiciosas para os mandatos compulsórios dos biocombustíveis na matriz de transporte, em tempo absolutamente curto, impõe o dever para a administração pública de planejar adequadamente sua execução. Isso fundamentado em critérios técnicos científicos, racionalidade econômica e compromisso público com a segurança do abastecimento nacional, a qualidade dos produtos e serviços e sobretudo a razoabilidade dos preços, os quais têm relação direta com o acesso dos combustíveis pela população brasileira.
A questão ambiental, em tempos de crise climática e intensos conflitos geopolíticos e comerciais, ganha importância e exige responsabilidades cada vez maiores do poder público. O problema de fundo é transformar o modelo de produção econômica levando-o a práticas sustentáveis, com reais reduções das emissões de gases do efeito estufa. No caso, a redução da intensidade de carbono da matriz de transporte não pode ser tratada na superfície das obrigações formais, mas se deve apurar nas cadeias produtivas a efetiva redução dos gases efeito estufa (GEE), do berço ao túmulo.
De forma que a indústria de biocombustíveis possui um gigantesco débito ambiental com a sociedade, relacionado com a mensuração e o diagnóstico das emissões de GEE na fase agrícola da produção. Essa atividade, que é caracterizada pela monocultura, a qual liquida a biodiversidade do ambiente de produção rural, mascarada por dados padronizados de produção, precisa de atenção e postura firme da administração pública, sob pena de, por omissão, contribuir para colocar em xeque a integridade ambiental dos biocombustíveis.
Assim, há contradições ambientais relevantes no sistema de produção dos biocombustíveis. Para Francisco, no caso do biodiesel é preciso olhar a pegada de carbono de todo o ciclo, que envolve a soja, o milho e o sebo do boi, já que apenas uma pequena parte dessa produção é feita pela agricultura familiar e a imensa maioria vem da monocultura.
"O RenovaBio, por exemplo, que remunera os industriais por uma produção sustentável e impõe um custo imenso para a sociedade brasileira, não regula de forma adequada o processo de certificação. O órgão é incapaz de assegurar a integridade ambiental dos títulos de descarbonização (CBIOs), decorrente da fragilidade das normas e da inércia absoluta quanto ao trabalho de fiscalização", critica ele ao apontar como desafios centrais os critérios de elegibilidade e o necessário controle da regularidade fundiária, ambiental e social das áreas e atividades de produção agrícola, com destaque para a capacidade de uso do solo.
De acordo com Neves, a produção agrícola no Brasil em regime de monocultura é caracterizada por grandes impactos sociais, fundiários e ambientais com absoluta falta de controle do poder público, sendo o uso da terra o maior emissor de GEE de todas as atividades econômicas desenvolvidas no Brasil, responsável por quase 70% desses danos ambientais.
eldquo;Embora a transição energética seja um objetivo legítimo e necessário, a adoção do B15 e do E30 parece responder muito mais a uma agenda política imediata do que a um planejamento técnico estruturado. Vale lembrar que o Acordo de Paris exige não apenas compromissos formais, mas sim resultados mensuráveis e adicionais, isto é, reduções de emissões que não ocorreriam sem novas políticas ou tecnologias. Apenas dessa forma o Brasil conseguirá alinhar seus avanços internos às metas climáticas internacionaiserdquo;, analisa Carlos Germano Jr.
Segundo ele, os principais beneficiados pelo aumento das misturas são os produtores de biocombustíveis, em especial os setores de etanol e biodiesel. eldquo;Esses grupos exercem forte influência por meio de associações representativas, participação em conselhos como o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e interlocução direta com o governo. Há ainda apoio de segmentos ligados ao agronegócio, que veem nessas medidas um canal de escoamento de produção e de valorização das commodities agrícolas. Essa capacidade de mobilização política e econômica tem peso significativo na formulação das decisões governamentaiserdquo;, diz o advogado.
Os especialistas ressaltam que o país deve buscar um modelo de equilíbrio, pautado pelo interesse público e pelo aperfeiçoamento das práticas ambientais sobre a política de combustíveis. Para eles, é preciso responsabilidade, cautela e gestão com foco no interesse público para evitar que decisões fiquem excessivamente subordinadas a pressões de produtores do setor.