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Enquanto moradores da Ilha de Santana (AP) se recolhem para dormir, um grupo de dez criminosos parte de lá em pequenos barcos rumo ao Pará. O foco são grandes embarcações que passam carregadas de combustível pelo Rio Amazonas.

Tripulação rendida, armas apontadas para a cabeça e ameaça de morte: a ação dos eldquo;piratas dos rioserdquo; costuma ser rápida, e prontamente eles fogem, com os barris roubados, pelo emaranhado hídrico da região.

No Estado do Amazonas, só em ataques contra embarcações de transportadores, mais de 7,7 milhões de litros de combustível foram levados do fim de 2020 a 2023, segundo levantamento do sindicato local das Empresas de Navegação Fluvial (Sindarma).

eldquo;O combustível é o maior foco desses tipos de criminosos pela facilidade de se desfazerem dele e comercializá-lo de forma ilegalerdquo;, Algenor Teixeira Filho, secretário executivo de operações integradas da Secretaria de Segurança do Amazonas.

Segundo ele, por mais que eletroeletrônicos e outros tipos de cargas possam ter maior valor agregado, costuma ser mais trabalhoso vendê-los a terceiros do que o diesel, por exemplo. Além disso, é mais fácil identificar, no caso dos eletroeletrônicos, quando são fruto de roubo.

A atuação dos piratas endash; também chamados de eldquo;ratos dersquo;águaerdquo; endash; não necessariamente tem elo com facções criminosas. Mas o avanço na região de organizações como Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital (PCC) aumenta a circulação de grupos armados e atrai outros tipos de atividades ilegais, como roubos de armas e combustíveis.

Em meio à rotina de medo e instabilidade, empresas contratam até escolta armada para proteger cargas maiores. Para incrementar a segurança, recorrem a botões de emergência, câmeras de monitoramento e até à Starlink, serviço de internet da SpaceX, do bilionário americano Elon Musk.

Em geral, os piratas trafegam por meio de lanchas ou barcos pequenos, o que facilita fugas após os roubos e a distribuição das mercadorias para outros barcos de redes criminosas. Os alvos mais comuns, em contrapartida, são embarcações cargueiras mais lentas, com menor poder de reação.

Estimativa da Polícia Federal indica que só a atuação do grupo descrito no começo da reportagem causava prejuízo mensal de R$ 150 mil a uma das empresas afetadas. Para o delegado Bruno Belo, da PF do Amapá, o tamanho do prejuízo está subvalorizado, uma vez que as quadrilhas não costumam atacar só uma transportadora.

Ao mesmo tempo, o delegado afirma que alguns navios, sobretudo de companhias estrangeiras, sequer registram ocorrência no Brasil endash; quando o assunto é transporte, tempo é dinheiro. eldquo;Além dos valores, tem também a questão de os tripulantes terem medo de serem mortos por criminosos locaiserdquo;, diz Belo.

No fim do ano passado, ele comandou a Operação Detour, que cumpriu 12 mandados de busca e apreensão em endereços de supostos membros de uma quadrilha de piratas. A ação contou também com participação da Polícia Civil e do Ministério Público do Amapá (MP-AP). As embarcações apreendidas totalizam mais de R$ 1 milhão. Já o material eletrônico agora está em fase de análise.

Segundo o delegado, a Ilha de Santana, de onde partiam os principais suspeitos de integrar o grupo, tem forte atuação da facção local Amigos Para Sempre (APS), mas também tem crescido por lá a presença do Comando Vermelho, considerado dominante na região Norte. As organizações criminosas costumam cobrar uma espécie de eldquo;pedágioerdquo; de grupos menores que entram com produtos roubados na ilha.

Como agem os piratas dos rios
Grupos costumam se aproximar dos alvos na calada da noite. Em poucos segundos, sobem nas embarcações e anunciam o assalto Em alguns casos, os piratas chegam a mirar até mesmo cargas de cocaína e skunk, importadas pelas facções de países vizinhos, como Peru, Colômbia e Bolívia. Depois, revendem para grupos rivais aos roubados.

eldquo;Não à toa, hoje a gente observa alguns dos elsquo;transportadores de drogasersquo; circulando com armas muito pesadaserdquo;, Roberto Magno,pesquisador do Laboratório de Geografia da Violência e do Crime da Universidade do Estado do Pará.

Segundo explica, os roubos são observados mesmo em rios pequenos, considerados centrais para a vida dos moradores e não tão policiados como as cidades.

Um desses exemplos é o estreito de Breves, localizado aos pés da Ilha do Marajó. Em 2022, ele recebeu a primeira base fluvial lançada pelo governo do Pará, na altura do município de Antônio Lemos (PA), para combater a alta de roubos de carga. O foco nesse ponto considerado estratégico, que liga o Rio Amazonas à região metropolitana de Belém, foi importante para ajudar a diminuir as ocorrências envolvendo embarcações nos anos seguintes, afirma a gestão estadual.

Mesmo com a desaceleração, esse tipo de roubo ainda preocupa, diante das dificuldades de fiscalização em um território amplo e complexo.

eldquo;A região encontra-se bastante vulnerável em relação a esses grupos, que atuam por toda a região amazônica, sobretudo nas áreas ribeirinhaserdquo;, Aiala Colares Couto,pesquisador da Uepa e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Couto afirma que o problema afeta o deslocamento em rios estratégicos da região, como Madeira, Amazonas e Solimões. Nos últimos meses, o Amazonas também avalia ter conseguido reverter a alta de roubos, mas monitora eventuais novos pontos de ação das quadrilhas.

Compostos por pelo menos quatro pessoas, os grupos de criminosos normalmente agem não só fortemente armados endash; usam inclusive fuzis endash;, como de forma silenciosa e a luzes apagadas em alguns casos, quando há cooptação de tripulantes dos barcos roubados. Esse segundo tipo é considerado menos frequente.

eldquo;A disputa pelo controle dos rios se dá de forma extremamente violenta, com abordagens e embates entre grupos criminosos fortemente armados, no meio de intensa troca de tiros, ocasionando combates letaiserdquo;, Igor Starling,promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas

eldquo;É uma constante guerra entre criminosos para a tomada dos pontos de controle dos rivais, elsquo;decretandoersquo; vidas (jurando de morte), soltando elsquo;salvesersquo; (mensagens a outros membros da facção), matando e corrompendoerdquo;, continua.

Atualmente, segundo o promotor, investigações do Ministério Público indicam inclusive o envolvimento de milícias e agentes do Estado em dinâmicas envolvendo os piratas dos rios. eldquo;Muitas vezes há uma blindagem dos criminosos ou até mesmo o apoio direto (a esses grupos)erdquo;, afirma Starling.

Atuação de piratas: prejuízo de cerca de R$ 100 milhões ao ano
Levantamento do Instituto Combustível Legal (ICL) aponta que a atuação dos piratas dos rios causa prejuízo anual de cerca de R$ 100 milhões nas atividades de transporte de cargas pelo Rio Amazonas.

eldquo;Esse número leva em conta gastos adicionais endash; com empresas tendo que contratar escolta armada endash;, outros investimentos em segurança e o próprio roubo da mercadoriaerdquo;, diz Emerson Kapaz, presidente da entidade.

Já os 7,7 milhões de litros de combustível roubados em ataques contra embarcações de transportadores amazonenses causaram prejuízos de R$ 48 milhões em um intervalo de três anos (de outubro de 2020 a dezembro de 2023), segundo o Sindarma.

eldquo;Mais ou menos 34% desse valor está no Rio Madeira, que é um rio bastante extenso e muito importante para a distribuição de derivadoserdquo;

Valéria Lima, diretora de downstream do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP)

Ao mesmo tempo, ela afirma que há também uma quantidade considerável de casos ao longo do Rio Amazonas, com destaque para os trechos próximos aos municípios de Itacoatiara e Coari.

Na Operação Nereus, deflagrada no ano passado pela Polícia Federal do Amapá em parceria com outros órgãos, o foco era um grupo de piratas que partia da Ilha de Santana para roubar cargas de tintas navais de embarcações que passavam pelo Amazonas.

eldquo;Elas possuem valor bem elevado, por isso entraram no alvo desses pirataserdquo;, afirma o delegado Bruno Belo. Foram cumpridos seis mandados de prisão preventiva, além de 15 mandados de busca e apreensão.

Segundo o delegado, o grupo investigado é suspeito de ter realizado ao menos 50 roubos de carga em quatro anos, principalmente no Rio Amazonas. eldquo;Só nessa ação conseguimos apreender cerca de R$ 300 mil em mercadorias desse tipo (tintas navais) no galpão de um dos investigados.erdquo;

A violência era um traço comum das ações. Em um dos casos, eles teriam amarrado um tripulante de um navio vindo do Chipre pelos seus pés e mãos, fazendo-o refém enquanto esvaziavam a embarcação. Nas ações, celulares e outros itens de valor dos marinheiros também costumam ser roubados.

Uma das hipóteses do Sindarma é que, com as transportadoras investindo em segurança, embarcações de menor porte passaram a se tornar alvos mais frequentes das quadrilhas. Os focos costumam ser barcos que se deslocam entre as regiões metropolitanas de Manaus, que concentra indústrias, e de Belém, onde está o Porto de Vila do Conde, em Barcarena.


Diante da atuação dos piratas, os governos estaduais têm se articulado para aumentar a segurança na região. Hoje, o Pará possui uma base fluvial endash; a de Antônio Lemos, no estreito de Breves endash;, mas prevê instalar outras duas até o fim do ano: uma delas em Óbidos, às margens do Rio Amazonas, e outra em Abaetetuba, próxima à Ilha do Capim.

O Amazonas, por sua vez, possui quatro bases em funcionamento, sendo duas móveis endash; a Tiradentes, que fica no Alto Solimões, e a Paulo Pinto Nery, que fica próxima da foz do Rio Madeira endash; e duas fixas endash; a Arpão 1, próxima ao município de Coari, no Rio Solimões, e a Arpão 2, localizada no Rio Negro. Esta última foi inaugurada no começo deste ano.

Como vem mostrando o Estadão, a Amazônia tem passado nos últimos anos por uma sobreposição entre crimes ambientais, como desmatamento e garimpo ilegal, com o narcotráfico. A nova dinâmica, afirmam autoridades policiais, complexificou o combate à criminalidade na região Norte, além de ter ocasionado em alta de crimes contra povos indígenas e quilombolas em Estados como o Pará.

Fonte/Veículo: O Estado de S.Paulo

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