O IVA e o Imposto Seletivo sobre o gás natural: problemas e sugestões
Dados a diversidade dos assuntos tratados na reforma tributária do consumo (EC 132/23, LC 214/24 e PLP 108/24), os infindáveis detalhes dos textos legais e o exíguo tempo para os parlamentares apreciá-los, é possível observar equívocos e pontos nebulosos, que podem endash; e devem endash; ser corrigidos ou esclarecidos.
Emendar ao PLP 108 as modificações necessárias à LC 214 mostra-se como a opção mais apropriada. O fato é que, como o Brasil precisa aumentar sua produtividade e esta reforma representa uma oportunidade neste sentido, urge aprimoramentos à LC 214. Quais seriam, então, os ajustes necessários no caso do gás natural?
Para contextualizar, vale lembrar que a LC 192 e a LC 194, aprovadas em 2022, alteraram, respectivamente, a forma de cobrança do ICMS para cinco tipos de combustíveis (gasolina, etanol anidro, diesel, biodiesel e GLP) e o nível da carga tributária, reduzindo-a.
Atendendo a uma demanda do setor, diante da elevada sonegação e da complexidade tributária de operar em 27 estados, a LC 192 determinou que a cobrança do ICMS passasse a ser feita de maneira monofásica, com alíquota ad rem (i.e., fixa por unidade) e única por produto em todo território nacional, substituindo a sistemática plurifásica anterior, com alíquotas ad valorem e diferenciadas por estado.
Passados 3 anos, constata-se que a experiência foi exitosa, tanto para o setor privado quanto para os fiscos estaduais. A simplificação e a desburocratização tornaram-se realidade. Ressalva-se que, para encontrar a alíquota ad rem única Brasil para os combustíveis líquidos, utilizou-se, em linhas gerais, a média ponderada dos preços na bomba (PMPF) pela quantidade vendida por estado.
Assim, pela nova regra e de maneira previsível, alguns estados perderam arrecadação, enquanto outros ganharam, de tal forma que a carga tributária no país permaneceria igual, não fosse a aprovação, na sequência, da LC 194, que impôs uma redução drástica na carga tributária para todos os estados, ao classificar tais combustíveis como bens essenciais. O que isso significou na prática?
À época, as alíquotas da gasolina, por exemplo, eram extremamente elevadas (variando entre 27% e 34%, a depender da unidade federativa) e precisaram ser reduzidas para a chamada alíquota modal, já que se tratava de bens essenciais, os quais não podem ser tributados a uma alíquotas superior à das demais operações em geral (conforme os artigos 18-A e 32-A do Código Tributário Nacional).
Na época, ditas alíquotas se encontravam entre 17% e 18%. Como solução negociada com o STF, o governo federal compensou a perda de arrecadação dos estados até dezembro de 2022. Como a partir de janeiro de 2023 haveria perda estrutural e permanente de receita, porém, muitos estados aumentaram ditas eldquo;modaiserdquo; no tempo. Ainda assim, o saldo continua negativo para os fiscos.
Pois bem, qual a relação destas LCs com a reforma tributária do consumo? Total! O inciso I do § 6º do artigo 156-A da EC 132 estabelece que os combustíveis e lubrificantes fiquem sob um regime diferente do IVA eldquo;normalerdquo; (débito/crédito, não cumulativo etc.).
De acordo com o título V (regimes específicos), capítulo I (combustíveis), artigo 172 da LC 214, os combustíveis foram definidos como sendo os cinco combustíveis da LC 192 acrescidos de mais seis outros tipos: etanol hidratado, querosene de aviação, óleo combustível, gae#769;s natural processado, biometano, gás natural veicular (GNV), além de outros definidos pela ANP. É neste contexto que valem sugestões de esclarecimentos à LC 214.
O primeiro esclarecimento é que GNV nada mais é do que o gás natural processado (GN). Sua menção específica no inciso XI do artigo 172 é redundante e, portanto, pode ser suprimida. A inclusão possivelmente decorre de um desconhecimento quanto às múltiplas finalidades do GN. Diferentemente da combustíveis líquidos, como gasolina ou etanol, o GN possui uma ampla gama de aplicações.
Usa-se GN como insumo para indústria, comércio, termelétrica e cogeração de energia elétrica. Também é empregado em residências (gás canalizado) e como combustível veicular (GNV), usado em veículos leves (carros de passeio) e pesados (ônibus e caminhões).
O segundo esclarecimento é que transporte e distribuição são elos distintos na cadeia do GN, conquanto cumpram funções semelhantes: movimentar o GN por duto. No transporte (regulado pela ANP), a movimentação finaliza nas distribuidoras; na distribuição (regulado pelas agências locais), a movimentação termina nos consumidores finais. Pode-se fazer um paralelo com a transmissão e a distribuição de energia elétrica. Esta distinção que ocorre no GN não ocorre com a gasolina. Talvez aí resida outra confusão.
A alínea b, inciso I, do § 6º, do artigo 156-A da EC 132 e o artigo 180 da LC 214 (que trata das hipóteses de vedação ao direito de crédito) sugerem que o legislador, ao escrever a norma, teve como referência a cadeia logística do combustível líquido e não a do GN, que é mais complexa. Logo, no artigo 180 há que incluir os demais elos da cadeia: escoamento e armazenamento, além da regaseificação. No caso do transporte, a distribuição poderia ser definida como: é o elo da transportadora e o elo das distribuidoras estaduais.
O terceiro esclarecimento é que o GN pode ser transportado de três formas: no seu estado gasoso (GN), comprimido (GNC) e líquido (GNL). Assim, todos são GN! No primeiro caso, o transporte é feito por gasodutos de transporte (como TBG, TAG e NTS) e de distribuição (por concessionárias estaduais). O GNC é produzido pela compressão do GN, sendo transportado por caminhões até o destino, onde é descomprimido para uso.
Já o GNL resulta da liquefação do GN, permitindo seu transporte por caminhão, trem ou navio, especialmente em trajetos de longa distância, com posterior regaseificação. Logo, para assegurar segurança jurídica e isonomia concorrencial, a LC 214 deve mencionar essas três formas de transporte, atribuindo-lhes o mesmo tratamento tributário. Além disso, sugere-se explicar que o é o gás natural processado no artigo 172.
Por isso, para garantir a devida simplificação do IVA no caso dos combustíveis, o legislador poderia adotar a monofasia apenas na UPGN e no importador (isto é, nos agentes econômicos do começo da cadeia produtiva do gás natural processado), e assegurar o crédito aos que usam o GN como insumo no seu processo produtivo: indústria, comércio, cogeração e termelétrica. Logo, sugere-se excluir o produtor de gás natural do artigo 176 como agente passivo.
O quarto e último esclarecimento diz respeito à importação. O GN pode ser importado de três formatos: gasoso, líquido ou comprimido; embora hoje as importações ocorram majoritariamente pelos dois primeiros. Quando importado por gasoduto, o GN ingressa no país, na sua maioria, pelo duto da transportadora TBG, que, depois, tem a pressão reduzida para entrar nos dutos das distribuidoras estaduais.
Já no caso do GNL, importado por caminhões ou navios, começam a surgir diferentes modelos de operação. Como o GNL pode ser re-gaseificado no Brasil (mais comum) ou não, o ideal, assim, é cobrar do importador de GN, independentemente do seu formato, seja gasoso ou líquido ou comprimido. Logo, é fundamental que o art.176 explicite que o tratamento tributário do GN será isonômico não variando conforme o formato de importação.
Vale mencionar que o maior desafio para o Comitê Gestor e para a Receita Federal será a definição da alíquota ad rem única Brasil do GN, dados seus diferentes usos. Seu cálculo é factível, mas seria importante envolver o Ministério de Minas e Energia e, em particular, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), para auxiliá-los na metodologia. Há que considerar, dentre outros aspectos, a média ponderada pelos diferentes usos, mantendo a carga tributária, conforme o artigo 174 da LC 214.
Além disso, de forma análoga ao que ocorreu nas LCs 192 e 194, a alteração de modelo deveria ocorrer em um único momento no tempo, sem transição. Já que um dos princípios da RTC é a simplificação, haverá uma desnecessária complexidade em manter por 6 anos um modelo híbrido tão diverso (diferente do IVA eldquo;normalerdquo;).
Feitos os 4 esclarecimentos e o alerta acerca do maior desafio do IVA neste setor, passa-se para o Imposto Seletivo (Livro II da LC 214). Para além de ser uma aberração majorar ainda mais a carga tributária do GN (lembrando que o IVA terá a mesma elevada carga atual) e de não haver qualquer argumento teórico para enquadrar o GN no artigo 153 da LC 214; o artigo 423 da LC 214 é inexequível.
Nos termos do inciso VIII do artigo 153, o Imposto Seletivo deve recair sobre bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, em consonância com um dos cinco valores da CF/88 (proteção ao meio ambiente, artigo 225). Como o GN faz parte da transição energética e tem deslocado combustíveis mais poluentes (carvão e diesel) da matriz energética, o GN causa externalidade positiva ao meio ambiente. Logo, o GN não se enquadra na tipificação do IS.
É por isso que o Ministério de Minas e Energia tem promovido o gás natural, para que haja aumento no seu consumo e não diminuição! Logo, impor Imposto Seletivo é, além de rasgar qualquer livro de microeconomia, afrontar com a política nacional e internacional de descarbonização. Além disso, como impôs a LC194, GN é um bem essencial, não podendo ter alíquota maior do que as demais operações!
Ainda que o GN fizesse mal ao meio ambiente na conjuntura atual (o que não é verdade), o artigo 423, que tenta aplicar alíquota zero do IS para certas finalidades do GN (indústria ou empresa de frota pesada), é inexecutável na prática. Para além de estarem faltando outros agentes nesta lista, como termoelétricas, comércio e cogeração, o mais grave é o fato de que o produtor/UPGN ou o importador não conseguem distinguir no início qual será o destino final do GN (para pagar alíquota zero), o que coloca em risco o crescimento deste mercado.
A solução, assim, é retirar as NCMs relativas ao GN do Anexo XVII da LC 214 (2711.11.00 e 2711.21.00). Em não sendo possível, a sugestão é a Receita Federal impor por decreto alíquota zero para o GN ao menos nos 10 primeiros anos e, depois do IVA devidamente implementado, modificar a redação da LC 214.
Por fim, tem-se o Reide, um Regime de Incentivo, contemplado no artigo 106 da LC 214 como regime favorecido. Como o IPI e o PIS/Cofins findam em 2027, como o incentivo será absorvido na sua totalidade pelo CBS, se tal artigo menciona IBS (que só existirá na sua completude em 2033) e o ICMS não faz parte desta isenção? Como fazer na fase de transição?
Em suma, é muito provável que o IVA sobre o GN se revele exitoso. A experiência da LC 192 comprova a eficácia do modelo, mostrando significativa simplificação. É importante, pois, que o Comitê Gestor e a Receita Federal considerem os pontos aqui abordados para emendar ao PLP 108/24 ditas melhorias.
Além disso, é recomendável não haver transição, regulamentar o Reide, trazer à mesa o Ministério de Minas e Energia e a EPE para o cálculo do ad rem e retirar o Imposto Seletivo do gás natural ou, ao menos, impor, por decreto, alíquota zero nos próximos anos. Oxalá tudo dê certo e o mercado de gás natural bombe! A transição energética agradece e o Brasil precisa aumentar a sua competitividade.
* por Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt