Aéreas veem combustível verde ainda distante e buscam alternativas para ficar menos poluentes
Quando o assunto é descarbonização do setor aéreo, os holofotes estão voltados para o combustível sustentável de aviação, mais conhecido por sua sigla em inglês: SAF. A empolgação se justifica, já que a solução seria capaz de reduzir em até 80% as emissões de carbono. No entanto, com capacidade de produção muito distante de atender à demanda, fabricantes e companhias aéreas apostam em medidas complementares para zerar as emissões de carbono (COe#8322;) até 2050. Entre elas, renovação de frota e medidas no solo para aumentar a eficiência operacional. O carbono emitido representará um custo adicional para os balanços das empresas a partir de 2027. Isso porque o Brasil é signatário do Corsia, um acordo internacional que determina que as empresas aéreas deverão comprar créditos para compensar as emissões que excederem os patamares verificados em 2019. eldquo;O investidor sabe que o carbono vai significar uma conta extra. Portanto, quanto menos eu emitir, melhor e mais barata a operação seráerdquo;, explica o gerente de Sustentabilidade da Azul, Filipe Alvarez. Além de uma demanda econômica, há também uma cobrança pública para que o setor aéreo reduza seu impacto ambiental, destaca o líder em Políticas Públicas e Parcerias em Sustentabilidade para América Latina e Caribe da Boeing, Otávio Cavalett. eldquo;Só vai existir um futuro para a aviação se ele for mais sustentável. Não temos outra opção. É uma demanda da sociedadeerdquo;, afirma. Alternativas A Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata, na sigla em inglês) projeta que 65% da meta de descarbonização até 2050, assinada em 2021, será obtida por meio do SAF, combustível sustentável feito a partir de óleos vegetais ou animais. Apesar de já ser trabalhado no Brasil em laboratório, a produção em larga escala deve demorar a ganhar fôlego. Além de demandar investimentos bilionários, a matéria final ainda pode ficar de três a cinco vezes mais cara que o querosene de aviação (QAV), o principal combustível fóssil usado atualmente. A regulamentação é outro nó que precisa ser desatado para implementação do SAF como combustível principal da aviação no Brasil e países vizinhos, segundo o CEO da Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta), Ricardo Botelho. eldquo;Na nossa região, ainda enfrentamos desafios significativos, uma vez que os regulamentos em países da América Latina estão em fase de desenvolvimento, e as circunstâncias locais diferem das dos Estados Unidos e da Europaerdquo;, afirma. Apesar do potencial do SAF, o setor não deve apostar todas as fichas em uma única iniciativa, aponta a gerente de sustentabilidade da Latam, Ligia Sato Puccioni. eldquo;Mesmo quando houver um novo combustível suficiente e com preço mais atrativo, ele não será 100% da soluçãoerdquo;, afirma. Ela avalia que o SAF tomou os holofotes não só pela importância para a meta final, mas, especialmente no Brasil, pelo grande potencial de o País ser um dos líderes na produção. eldquo;Mas, na prática, precisaremos de um mix de soluçõeserdquo;, acrescenta. Na divisão dos pilares para a descarbonização, a Iata calcula que a troca de aeronaves e medidas de eficiência poderão eliminar 16% das emissões até 2050. O restante deve ser resolvido por meio de projetos ambientais, com 11% em captura e armazenamento de COe#8322; e 8% em compensação. Se os desafios forem superados, o setor será, sozinho, responsável pela redução de 2% da emissão de toda a atividade humana no planeta. Metas A busca para reduzir as emissões se dá no contexto de frear o efeito estufa, que ocorre principalmente pela queima de combustíveis fósseis. No mercado corporativo, o tema é visto como fundamental para a manutenção da saúde financeira das empresas, já que eventos climáticos extremos afetam a produtividade e podem impor obstáculos intransponíveis nas próximas décadas. eldquo;A questão é saber como fazer o que é preciso. Todo esse movimento de descarbonização exige uma mudança de cultura e mentalidade. Isso só pode ser feito por meio de uma política pública complexa e que considere os interesses de todos: empresas, governos e sociedade civilerdquo;, avalia a advogada Gabriela Giacomolli, especialista em ESG. Diante da complexidade do tema, as aéreas de todo o mundo adotam planos distintos para alcançar a meta de 2050. Os pilares são os mesmos: compra de aviões mais modernos, troca de equipamentos das operações em solo e iniciativas complementares de logística. Há diferenças, contudo, sobre a antecipação de metas e sobre o uso do mercado de crédito de carbono para a contabilização dos avanços. A Câmara dos Deputados deu um passo importante sobre o tema no início deste mês, ao aprovar o projeto de lei (PL) do eldquo;Combustível do Futuroerdquo;. A matéria, agora em curso no Senado, determina que as aéreas precisarão incluir 1% de SAF nos tanques a partir de 2027. Essa proporção aumentará 1 ponto porcentual a cada ano, alcançando 10% de SAF na mistura do combustível em 2036. Com isso, fica a cargo das empresas acompanhar ou acelerar a adoção do SAF, equacionando as demais medidas para entregar as metas. A Azul quer reduzir 46% da intensidade de emissão até 2030. eldquo;Temos, desde 2016 até agora, redução de intensidade de cerca de 22%erdquo;, diz Filipe Alvarez. Reduzir a intensidade significa, na prática, transportar o mesmo peso emitindo menos. Até aqui, a empresa tem apostado principalmente na compra de aeronaves mais eficientes. A Latam se comprometeu a reduzir ou compensar 50% da intensidade das emissões domésticas até 2030. eldquo;É um processo que já está acontecendo. Estamos fazendo a lição de casa, dentro do que dá para fazer. A solução terá de ser pensada em parcerias, envolvendo diversos entes. Precisa da cadeia completaerdquo;, afirma a gerente Ligia Sato Puccioni. O diretor do Centro de Controle Operacional (CCO) da Gol, Eduardo Calderon, explica que a companhia busca reduzir as emissões há mais de uma década. Porém, a estratégia é de cautela e, até o momento, a empresa não pretende adotar metas mais ousadas que as da Iata. Segundo ele, isso se dá pela perspectiva de que o novo combustível demandará tempo. eldquo;Hoje o combustível pesa muito. Por isso, a decisão é seguir o que a regulamentação manda, sem antecipar a mistura de SAFerdquo;, aponta Calderon. O advogado Ricardo Fenelon Jr., ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), diz que, na base das discussões sobre as medidas, está a preocupação para que não ocorra aumento de custos. eldquo;Não parece, mas os prazos são bastante apertados. Quase oito anos depois, por exemplo, que o Corsia foi aprovado, ainda há muitas dúvidas de como a redução de fato vai ocorrer e se será viável do ponto de vista econômicoerdquo;, diz. Emissões Na média, as operações aéreas no Brasil, somando as domésticas e as internacionais, ainda não conseguiram demonstrar redução das emissões de carbono. Os cálculos feitos pela reportagem com base nos dados da Anac de movimentação do modal aéreo mostram que o setor emitiu, em 2015, 51 kg de COe#8322; a cada 100 RTK, sigla em inglês para toneladas-quilômetro transportadas. O volume chegou a 54 kg por 100 RTK em 2019, ano base anterior à pandemia de covid-19. Com a chegada da pandemia, as operações foram duramente afetadas, com redução da demanda. Porém, mesmo com menos voos, a emissão proporcional atingiu seu maior pico, ficando em 60 kg por 100 RTK em 2020 e em 64 kg em 2021. Em 2022 o volume voltou a cair, mas ainda está acima da série. Em 2022 foram emitidos 58,91 kg para cada 100 RTK. Em 2023, 57,10 kg para cada 100 RTK. Há diferentes metodologias para medir a emissão de carbono. Os números utilizados nesta reportagem são referentes à Tier 3, que leva em consideração as emissões das aeronaves da aviação civil comercial e privada, em voos domésticos e internacionais, com origem no Brasil, de empresas nacionais ou estrangeiras. Esse método exclui os voos feitos com gasolina de aviação, restringindo-o às aeronaves abastecidas com querosene de aviação emdash; que é usado em motores a jato. A forma de calcular a proporção de emissão por atividade também difere. Enquanto a Latam faz a divisão de emissão por RTK, a Azul calcula sua emissão por número de passageiros pagantes transportados por quilômetro (RPK). Com isso, os números ficam ligeiramente diferentes, mas, na média, apresentam curvas praticamente idênticas. Apostas para curto e médio prazo Na corrida da aviação para reduzir a emissão de carbono, cada iniciativa possui seu trunfo. Se por um lado o SAF é o mais eldquo;poderosoerdquo;, por ter o maior impacto positivo ambiental, outras duas alternativas se destacam pela viabilidade: renovação de frota e otimização operacional. Ainda que com suas limitações, têm a vantagem de serem mais imediatas e factíveis, financeiramente e tecnologicamente. Por isso, são apostas para o curto e médio prazo. A indústria calcula que aeronaves mais novas emitem entre 20% e 30% menos dióxido de carbono em comparação a modelos anteriores. Isso é atribuído principalmente à maior eficiência obtida com tecnologias mais modernas, gerando economia em diferentes frentes para as companhias do setor. Por isso, a renovação da frota está na agenda de descarbonização das aéreas. eldquo;Temos adquirido aviões mais modernos, que consomem menos e, com isso, reduzem emissõeserdquo;, explica Ligia Puccioni, da Latam. Como exemplo, cita os modelos A 30020 e 21 Neo, da Airbus, que representam uma redução de 20%, e o Boeing 787, que consome e emite 25% menos. A Azul também vem promovendo substituições nos últimos anos, segundo o gerente de Sustentabilidade Filipe Alvarez. eldquo;A renovação da frota representa redução monstruosa para descarbonizaçãoerdquo;, afirma. eldquo;Para nós, essa estratégia é importante tanto pela redução da emissão de carbono quanto pela eficiência de combustívelerdquo;, complementa, destacando que atualmente a frota da Azul tem idade média de sete anos. Na mesma linha, a Gol opera com uma idade média de 8 a 9 anos. A expectativa é trocar toda a frota até 2035, de acordo com o diretor Eduardo Calderon. Para o executivo, os problemas na cadeia de suprimentos, que têm dificultado a produção de peças e aeronaves, não devem atrapalhar esse plano. eldquo;Não achamos que a entrega de aviões será problemaerdquo;, afirma. eldquo;Temos tido atrasos, mas há investimentos muito grandes em aeronaves na América Latinaerdquo;, diz o gerente sênior de Assuntos Externos e Sustentabilidade da Iata para as Américas, Pedro de la Fuente. Ele destaca que as aéreas da região operam com uma frota média de 7 a 12 anos, contra uma média global superior a 15 anos. Mais de 50% da frota das companhias aéreas afiliadas à Alta foi renovada na última década, resultando numa diminuição de 30% na idade média das aeronaves. Desde 2005, essas empresas encomendaram e colocaram em operação mais de mil aeronaves, representando um investimento superior a US$ 100 bilhões. Eficiência operacional No entanto, as aéreas possuem um eldquo;trabalho gigante pela frenteerdquo;, avalia o líder em Políticas Públicas e Parcerias em Sustentabilidade para América Latina e Caribe da Boeing, Otávio Cavalett. eldquo;Trocar uma frota inteira de uma hora para outra não é factível. É necessário também melhorar a operação com os aviões que operam hoje e no futuro próximoerdquo;, diz. É nessa equação que entram as iniciativas de otimização de eficiência operacional. Na prática, a estratégia é baseada no desenvolvimento de soluções que permitam que as aeronaves e o ecossistema de aviação desempenhem melhor com menos combustível e emissão de carbono. Somadas, iniciativas desse tipo podem representar uma redução de 10% a 15% nas emissões, de acordo com Cavalett. Essas estratégias começam antes das decolagens, com a otimização da operação no solo por meio de melhorias no modelo de abastecimento e eletrificação de automóveis utilizados no apoio às aeronaves, por exemplo. A manutenção dos motores, para que os aviões operem com máxima eficiência, e o taxiamento com um único motor também entram na lista. Com as aeronaves no ar, o destaque fica por conta da otimização das rotas, tornando-as mais diretas, para que as aeronaves não precisem voar mais tempo do que o estritamente necessário. eldquo;No curto prazo, existem muitas eficiências que podem ser encontradas e aplicadas com parcerias entre as companhias e fornecedores de sistema de navegaçãoerdquo;, afirma Pedro de la Fuente, da Iata. A realização de decolagens e aterrissagens com flaps reduzidos, assim como a diminuição da redução da velocidade de decolagem em locais com altitudes inferiores a 1.500 pés, também são outras estratégias utilizadas para reduzir o consumo de combustível e consequentemente, emissão de COe#8322;, durante os voos. Novas tecnologias Olhando mais para frente, especialistas não descartam o uso de fontes alternativas de energia, com destaque para o hidrogênio e a eletricidade. No entanto, apesar de serem mais limpas do que o combustível fóssil, ainda estão em desenvolvimento e são um desafio do ponto de vista operacional. A principal questão é que, diferente do SAF, o uso deles prevê mudanças na estrutura e sistema das aeronaves. Outro ponto citado por La Fuente, da Iata, é que poderiam diminuir a eficiência operacional, na contramão do que a indústria tem buscado. No caso da energia elétrica, os aviões teriam de carregar baterias e o hidrogênio precisaria ser resfriado e transportado na forma congelada, o que deixaria as aeronaves mais pesadas e aumentaria a necessidade de combustível. eldquo;Eficiência é diminuir peso e não aumentar. Sem contar que reduziria o espaço para passageiros, aumentando a demanda por mais vooserdquo;, diz. Governo O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) diz que acompanha de perto a agenda, priorizando a produção do SAF. eldquo;No entanto, os elevados custos de produção permanecem um desafio a ser superado. Para que o uso de SAF se dissemine entre os operadores aéreos, será fundamental que haja alguma competitividade de preço em relação ao combustível fóssilerdquo;, diz, em nota. O ministério afirma que, na condição de formulador de políticas públicas para a aviação civil brasileira, considera indispensável que o governo federal ofereça incentivos que ajudem a fomentar a produção de SAF no Brasil e a reduzir o custo do combustível para as empresas aéreas. Nas próximas semanas, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) deverá criar um grupo de trabalho que terá a função de propor políticas de estímulo à produção de SAF no Brasil, segundo informa o ministério. eldquo;Nos próximos anos, a competitividade internacional de uma empresa aérea estará intimamente ligada à sustentabilidade ambiental de suas operações. Por isso, para que o setor aéreo brasileiro consiga competir internacionalmente, é fundamental que o País avance no desenvolvimento da indústria de SAFerdquo;, afirma o MPor.