Cade debate fraudes, tributação e concentração no mercado de combustíveis
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) realizou, nesta quinta-feira (13/11), uma audiência pública para discutir barreiras à livre concorrência, práticas anticompetitivas e a elevada concentração nos mercados de distribuição e varejo de combustíveis no Brasil. Ao longo de várias horas de exposições, representantes do governo, de órgãos de controle, de distribuidoras, revendedores, refinarias e entidades setoriais traçaram um diagnóstico comum: o setor segue marcado por fraudes bilionárias, distorções tributárias, concentração econômica e um ambiente regulatório que, muitas vezes, dificulta a entrada e a sobrevivência de novos agentes. Logo na abertura, o Cade informou que está reunindo o material escrito e as apresentações encaminhadas à consulta pública e que contratará um acadêmico para organizar esse conjunto de informações. Um estudo atualizado sobre o mercado de combustíveis, feito a partir de dados do Instituto Carioca, deve ser divulgado ainda neste ano, enquanto um compilado mais robusto, com as contribuições escritas, ainda está previsto para 2025. O conteúdo servirá tanto para consumo interno emdash; em análises de casos de concentração e condutas emdash; quanto para subsidiar políticas públicas e ser compartilhado com órgãos como ANP, AGU, Ministério de Minas e Energia e secretarias estaduais de Fazenda. Concentração no varejo e eldquo;bomba brancaerdquo; Uma parte relevante da audiência foi dedicada à estrutura do varejo de combustíveis. Expositores destacaram que três grandes agentes concentram cerca de 54% do mercado nacional, com participação superior a 60% em oito estados e chegando a quase 94% no Amapá. Esse cenário, segundo os participantes, limita a rivalidade e aumenta o poder de barganha das grandes distribuidoras sobre os postos. Nesse contexto, a chamada eldquo;bomba brancaerdquo; emdash; possibilidade de postos bandeirados comprarem combustíveis de qualquer distribuidora emdash; foi apontada como instrumento originalmente pensado para ampliar a concorrência, após a Lei de Liberdade Econômica e resoluções da ANP. Na prática, porém, representantes de distribuidoras regionais e revendedores relataram que a utilização desse mecanismo tem sido alvo de litígios considerados predatórios, com grandes players acionando a Justiça para restringir a atuação de concorrentes menores e pedindo acesso a informações comerciais sensíveis. Também foram lembradas cláusulas contratuais consideradas abusivas em contratos de exclusividade entre distribuidoras e postos, como exigência de galonagem mínima, multas elevadas e bonificações condicionadas a volumes. Nota técnica de 2018 já havia apontado esses problemas, e parte dos expositores pediu que o Cade retome esse debate para coibir práticas que fecham o mercado. Aviação e riscos de monopólio Outro foco importante foi o mercado de combustíveis de aviação, em especial a gasolina de aviação (AVGAS). Ricardo Padilha Saldanha, representante da Rede Sol, detalhou que poucas empresas dominam esse nicho e que, em determinados terminais, uma companhia exerce controle praticamente exclusivo da tancagem e da logística de carregamento. Segundo ele, essa estrutura permite impor condições e preços a concorrentes e cria riscos de desabastecimento, já que a total dependência de uma única base operacional torna o sistema vulnerável. Além disso, Eduardo Molan Gaban, representante do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI), destacou que a combinação entre concentração no refino, domínio de infraestrutura e contratos unilaterais se reflete diretamente em preços mais altos emdash; com impactos sobre a formação de pilotos, a aviação agrícola e outros segmentos dependentes do combustível. Barreiras regulatórias e burocráticas à entrada A audiência também tratou de barreiras regulatórias e burocráticas enfrentadas por novas distribuidoras e por empresas regionais em processo de expansão. Foi criticada, por exemplo, a proposta de aumento do capital social mínimo exigido pela ANP para autorização de distribuidoras emdash; de R$ 4,5 milhões para R$ 9,5 milhões, em um dos cenários mencionados. De acordo com estimativas apresentadas, até 60% das distribuidoras atuais não se enquadrariam no novo patamar, o que poderia levar à saída de empresas menores ou desencorajar novos entrantes. Além disso, representantes do setor alertaram para exigências adicionais impostas por secretarias de Fazenda estaduais, que acabam se sobrepondo às regras federais. Segundo Cláudio Souza de Araújo, diretor jurídico da Brasilcom, algumas unidades da federação têm exigido que distribuidoras mantenham base própria em cada estado, o que, na prática, inviabiliza a operação de empresas regionais. eldquo;A exigência de base própria para cada filial dificulta a operação das distribuidoras regionais e compromete a eficiência logística e a competitividade do setorerdquo;, afirmou Araújo. Fraudes, sonegação e atuação do crime organizado Um dos pontos mais sensíveis do debate foi a dimensão da ilegalidade no setor de combustíveis. Entidades apresentaram estimativas de que as perdas anuais com sonegação, inadimplência e fraudes operacionais e tributárias somam dezenas de bilhões de reais, afetando a arrecadação pública e distorcendo a concorrência. O Instituto Combustível Legal destacou que o setor movimenta mais de R$ 1 trilhão por ano e é, por isso, altamente atrativo para o crime organizado. Além de práticas como adulteração, furto e descaminho, foi mencionado o uso de estruturas financeiras opacas, como contas em fintechs que movimentavam grandes volumes de recursos sem identificação transparente dos titulares. eldquo;Estamos falando de um mercado com faturamento gigantesco e uma tributação complexa. Sem integração entre ANP, Fazenda, Ministério Público e Polícia Federal, não há como enfrentar a ilegalidade de forma efetivaerdquo;, afirmou Emerson Kapaz do ICL, defendendo a criação de uma central nacional de monitoramento de combustíveis capaz de cruzar dados fiscais, logísticos e de fiscalização em tempo real. A representante da Advocacia-Geral da União (AGU), Priscilla Rolim de Almeida, apresentou um estudo que analisou como as variações de preços nas refinarias são repassadas ao consumidor. Segundo ela, há uma clara assimetria na transmissão dos preços: aumentos são repassados rapidamente emdash; e, em alguns casos, até de forma amplificada emdash; enquanto reduções chegam de maneira mais lenta e parcial, levando de duas a cinco semanas para aparecer nas bombas. Dados específicos sobre o GLP (gás de cozinha) ilustraram o problema. Em 2019, a margem de distribuição teria crescido entre 64% e 164%, muito acima da inflação acumulada no período, com forte aumento da margem líquida. O caso foi encaminhado para investigação preliminar pela Polícia Federal e para apuração pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), diante de possíveis práticas anticompetitivas. Distribuidoras regionais e revendedores na ponta A audiência também abriu espaço para distribuidoras regionais e revendedores, que relataram dificuldades práticas no dia a dia para competir com grandes grupos emdash; incluindo barreiras comerciais, entraves regulatórios e disputas judiciais que, segundo eles, acabam restringindo a atuação de agentes menores no mercado. Na ponta do varejo, associações de revendedores reforçaram que o posto não deve ser tratado como vilão automático no debate sobre preços. eldquo;O revendedor não é o culpado pelos aumentos; os problemas nascem antes, na cadeia de refino e distribuiçãoerdquo;, resumiu Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, diretor-executivo da AbriLivre. Contratos de bandeiramento também foram apontados como instrumentos que, em muitos casos, tornam o posto dependente da distribuidora, com pouca transparência na formação de preços, prazos longos e metas de volume consideradas excessivas. Os participantes convergiram na avaliação de que é necessária uma atuação coordenada entre Cade, ANP, AGU, Ministério Público, Receita, secretarias de Fazenda e outros órgãos para reduzir fraudes e sonegação; harmonizar requisitos regulatórios e tributários; revisar instrumentos contratuais que possam fechar o mercado e avaliar o impacto de decisões estatais emdash; inclusive da Petrobras emdash; na concorrência. Segundo o presidente do Cade, Gustavo Augusto Freitas de Lima, a autarquia deve agora consolidar as contribuições recebidas, atualizar os estudos sobre o setor e definir de que forma os insumos da audiência serão incorporados à agenda de investigações, análises de atos de concentração e ações de advocacia da concorrência relacionadas ao mercado de combustíveis.